Por Breno Barlach*
E a extrema direita chega ao poder no Brasil. Um candidato sem base institucional clara, que nunca pertenceu a grandes partidos, que, há míseros dois anos teve apenas quatro votos para Presidente da Câmara (nem seu filho, também deputado, se deu ao trabalho de ir votar) e que representava senão uma pequena parcela de corporações militares no Rio de Janeiro, foi eleito presidente após meses de campanha via redes sociais.
Bolsonaro já era relativamente conhecido por seus discursos agressivos, em geral contra feministas, em favor da violência policial e da ditadura militar. No entanto, não passava de mais um personagem caricato em um Congresso pouco representativo da população brasileira. Pouco representativo e pouco conhecido. O público teve seu primeiro contato com seus congressistas durante a votação pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Transmitida ao vivo e acompanhado como um jogo de Copa do Mundo, a votação foi marcada por uma retórica conservadora repetitiva (“Por Deus e pela Família, voto sim!”) de tão baixo nível intelectual que chocou mesmo setores favoráveis ao impedimento.
Naquele dia, ficou evidente ao observador a natureza da reação contra o PT. A existência de uma presidenta mulher, ex-guerrilheira e de esquerda era a verdadeira ofensa contra a qual rebelaram-se os deputados, muitos dos quais beneficiados durante anos pelos governos do PT. O impeachment devolvia aquela mulher ao lugar de onde, para eles, nunca deveria ter saído. Para fora da arena pública e de volta ao ámbito familiar.
Em meio às repetidas menções a Deus e à Família — ou seja, àqueles terrenos onde o liberalismo político jamais adentrou — nasce a candidatura Bolsonaro. Em um discurso distinto dos demais, o deputado dedica seu voto aos porões onde o liberalismo entrou e foi assassinado. O torturador Brilhante Ustra, único a ser julgado e ter os crimes reconhecidos pela justiça brasileira, entrava no Congresso Nacional pela retórica daquele que agora elegemos presidente. Ali iniciava-se uma campanha rumo ao Palácio do Planalto. Uma campanha ainda pouco compreendida.
Três grandes temas são usados para explicar a ascensão de Bolsonaro nos últimos dois anos: um fracasso de políticas neoliberais, a incapacidade das elites partidárias de frearem o crescimento de um político outsider, e a expansão de um conservadorismo autoritário em reação a políticas progressistas aprovadas globalmente nas últimas décadas. Para os três temas, discute-se por todos os lados o tamanho da responsabilidade do Partido dos Trabalhadores no processo. Passo por cada um deles.
Em primeiro, a reação ao neoliberalismo é a tradicional explicação para o advento de políticos populistas, de esquerda ou direita. No primeiro caso, a narrativa é de transformação de políticas neoliberais em progressistas (caso de Hugo Chávez). No segundo, a insatisfação com desmonte do estado, desregulação de redes de proteção e crise econômica paga pelos mais pobres seriam motores de uma insatisfação geral com a esfera pública que levaria à eleição de outsiders da política, mas normalmente insiders da esfera econômica. Esse é o caso Trump e, parcialmente, o de Bolsonaro. Personagens que teriam conseguido (segundo essa narrativa) unir a revolta de massas, que perdem com políticas neoliberais, com as próprias elites econômicas que incentivam e bancam essas políticas. Bolsonaro seria um Luís Bonaparte tupiniquim, apesar de não ter qualquer histórico que justifique seu apelo para elites financeiras.
Sobre o lugar do PT neste ponto, em 2018 o partido perdeu votos entre as camadas médias da população, enquanto manteve seu padrão nos dois extremos da renda — derrota entre os mais ricos e vitória entre os mais pobres. Esse estrato médio foi às ruas em 2013 pedindo serviços públicos “padrão FIFA”, mas em parte graças à operação Lava Jato e suas espetaculares denúncias, passou a desconfiar de políticas públicas e a ver riscos de corrupção em qualquer atuação do estado. Essa camada média é de fato a grande derrotada pelas promessas do neoliberalismo. Chegaram à Universidade pela primeira vez durante os governos do PT e, ao concluírem, viram que a promessa do diploma não se cumpriu com melhores salários e condições de vida.
“Mas decepções econômicas e brechas entre elites partidárias não são suficientes para explicar o apelo de uma retórica abertamente autoritária, com vieses racistas, homofóbicos e misóginos”
Aqui entra a segunda parte de explicações. Por que os partidos tradicionais de direita não conseguiram trazer esse eleitor de classe média para eles? O PSDB tinha o voto anti-PT consolidado desde 2006. Em 2014, Aécio Neves chegou a poucos passos de vencer as eleições e, misteriosamente, desapareceu durante os debates sobre o impeachment. Envolvido em escândalos de corrupção, Aécio forçou a adesão do PSDB ao governo Temer, em parte como erro de cálculo sobre possibilidade de vitória em 2018, em parte para tentar impedir o avanço de investigações da Lava Jato em seu partido. Ao não aceitar os resultados das urnas em 2014, o PSDB abriu uma caixa de pandora sobre si mesmo. O vazamento de áudios com pedidos explícitos de propina acabou com a carreira política de Aécio, manchou o PSDB e abriu caminho para que uma nova direita tomasse o espaço de resistência ao PT.
A campanha Bolsonaro foi fomentada pela Lava Jato, mas não devido à prisão de Lula e ataques à esquerda. Os efeitos da Lava Jato foram, ironicamente, muito mais fortes na centro-direita que não soube se recuperar dos escândalos envolvendo os caciques tucanos (PSDB) e do PMDB. Não à toa, o PT mantém-se como o maior partido do próximo Congresso. O PSDB perdeu 30 deputados. Mais além, o partido perdeu o seu sentido. De direita neoliberal moderada, com viés social-democrata entre as lideranças partidárias, hoje restou ao partido a imagem de linha auxiliar da extrema direita, tendo como maior liderança um populista tão anti-popular quanto Bolsonaro, João Dória, futuro governador de São Paulo.
Mas decepções econômicas e brechas entre elites partidárias não são suficientes para explicar o apelo de uma retórica abertamente autoritária, com vieses racistas, homofóbicos e misóginos. Entre tantas aberrações citadas em seus discursos nos últimos anos, as falas anti-comunistas, anti-feministas e militaristas se destacam. Um nacionalismo brutal que expõe uma contradição. Ao mesmo tempo busca a supressão de toda a diferença em um ideal brasileiro (“minha bandeira jamais será vermelha”), e a intensificação de toda a diferença, ressaltando que não fazem parte deste ideal qualquer tipo de militante.
Voltamos para o impeachment de Dilma. A ascensão de discursos feministas (mesmo que não convertidos em direitos) deixa expostas a queda das fronteiras do espaço de pertencimento masculino. John Locke, quando traçou o que seria a justificativa do liberalismo político (trabalho e propriedade como base da liberdade) não deixou de mencionar a existência da família e do servo. Ficava claro que, se o teórico pensou na superação do poder patriarcal na esfera pública, manteve-o na esfera privada. A ruptura dos padrões de dominação privados aparece mais nos discursos do presidente eleito que questões de propriedade, cujas decisões ele relega ao futuro “superministro” da Economia. A quebra dessa barreira, explicitada tantas vezes nas últimas décadas de ascensão de discursos progressistas, talvez seja a chave para entendermos a re-organização da extrema-direita global, que hoje passa a avançar também na América Latina.
Fonte da imagem: https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/bolsonaro-diz-que-nao-teria-nada-a-fazer-em-caso-de-derrota-e2h0komzs9adtk1gppjyrl049
* Sociólogo e Cientista Político pela Universidade de São Paulo, com passagem pela Cornell University. Hoje atua como consultor de projetos de impacto social